É incontestável: os japoneses preferem a cerveja à sua bebida nacional, o saquê. Não é novidade. Quase sempre gelada, a loira tomou de assalto o paladar dos bebuns de todo o planeta e no Japão não seria diferente. Acontece que o saquê japonês não está deixando barato: do mesmo modo que ocorre no Brasil com a cachaça, os produtores tradicionais estão em ponto de reação.
Em todo o país, têm surgido pessoas motivadas na intenção de resgatar o consumo do saquê e de outras variedades de bebidas alcólicas japonesas e elas são unânimes na conclusão de que um dos motivos pelos quais muitos japoneses, em especial os jovens, não consomem esses produtos é a falta de conhecimento.
O aumento no consumo da bebida ainda tem sido considerado tímido. Porém, a badalação em torno do saquê vem aumentando nos últimos anos, não somente no Japão mas, também, no exterior. Só que ainda há pouca informação em português para quem quer aprender mais sobre a bebida, mesmo para quem vive aqui na Terra do Sol Nascente. Conheça esta bebida japonesa que carrega tanta história, tradição e, claro, uma boa dose de álcool.
Muito prazer, saquê
Fora do Japão, sake (assim como sua versão aportuguesada ‘saquê’) virou o nome genérico pelo qual ficou conhecido o nihonshu, uma bebida feita de arroz que é o goró legitimamente japonês mais consumido fora da Terra do Sol Nascente. Fermentada, a bebida costuma ter entre 16 e 20 por cento de teor alcóolico, o mais alto nesta categoria etílica. Mas a família kokushu — nome usado pelos japoneses para as suas bebidas nacionais — é ainda maior.
Além do saquê/nihonshu, os japoneses produzem tradicionalmente o shōchū e o awamori. O primeiro é destilado e pode ser feito com diversos ingredientes: arroz, cevada, batata-doce, trigo sarraceno, açúcar mascavo e outros. O teor alcoólico fica entre 25 e 35 por cento, de acordo com o método de produção. Já o awamori, típico da província de Okinawa, é um destilado feito com um tipo específico de arroz, da espécie Oryza sativa, e tem entre 30 a 43 por cento de teor alcóolico.
Cada uma dessas variedades é um universo em si mesmo e merece uma reportagem só para ela. Por isso, aqui, a gente se foca no nihonshu que vai ser chamado simplesmente de saquê.
Produção
O arroz é a matéria-prima principal do saquê. Apesar de grande parte da produção da bebida usar a variedade do cereal que poderia estar num prato de comida, os saquês de alta qualidade são feitos com um tipo de arroz especial chamado genericamente de sakamai. Ele difere do gohan (arroz japonês) nosso de cada dia por conter uma versão maior do shinpaku, uma reserva de amido que fica no centro do grão de arroz.
Além do amido, o grão de arroz contêm gorduras e proteínas que tendem a evitar que a bebida seja mais frutada e aromática. Por isso, o maior desafio na fabricação de saquês de alta qualidade é se ver livre de substâncias consideradas pouco nobres. Nesse caso, as diversas variedades de sakamai levam vantagem porque, com o amido concentrado no meio do grão, basta polir o arroz até retirar o máximo possível da parte que é indesejada.
Os saquês de alta qualidade são classificados pelo grau de polimento do arroz. Quanto menos do grão de arroz é utilizado na produção da bebida, mais frutado tende a ficar o sabor. Quando a bebida é produzida com 50% ou menos do grão de arroz, ela é chamado de daiginjō (lê-se ‘dai-guin-jô’) e é considerada de altíssima qualidade. Se a proporção usada do arroz fica entre mais de 50% e até 60%, a bebida ganha a classificação de ginjō (lê-se ‘guin-jô’). Não é o melhor de todos mas, ainda assim, é um goró de alta qualidade.
Onipresente bolor
Quando a gente se muda para o Japão, parece que descobre magicamente uma categoria de seres vivos que só tinha visto em desenhos animados: os bolores. Não que eles não estejam presentes no Brasil, muito pelo contrário. Acontece que temos tanto horror aos fungos que praticamente os desprezamos.
No Japão, essa categoria de organismos ganha um outro status. Dezenas de fungos comestíveis são utilizados nas refeições, por exemplo. Mas eles são apenas a ponta micológica do iceberg que é a cultura gastronômica japonesa. Daquele shoyu inocente que a gente usa para dar sabor no yakissoba até as sempre presentes conservas tsukemono, um sem número das comidas tradicionais do país é fermentada, ou seja, chega às nossas mesas depois da ação de algum fungo.
Em comum com o shoyu e o missô, o saquê tem o Aspergillus oryzae, um fungo conhecido em japonês como kōjikin. Apesar de ter sido trazido da China, essa espécie é tão importante para o Japão que ganhou o status de fungo nacional. Mas ela não atua sozinha na produção do saquê. Na verdade, o kōjikin tem uma função bem específica na fabricação da bebida. Ele é usado num processo chamado de sacarificação, ou seja, o momento em que o amido presente no arroz é transformado em açúcar. Para o processo de fermentação em si, no qual o açúcar é transformado em álcool, entra em ação as leveduras, uma outra categoria de fungos usada também na produção de cerveja. No saquê, esses dois processos acontecem ao mesmo tempo e, por isso, eles são chamados de fermentação múltipla paralela.
As etapas do processo
Na produção do saquê, o arroz é inicialmente polido e lavado. Em seguida, o cereal é imerso em água tempo suficiente para absorver cerca de 30% do seu peso. Depois, ele é retirado da imersão e cozido no vapor por cerca de uma hora. Somente após o cozimento que o kōjikin é aplicado. Leva cerca de dois dias para o arroz ser coberto pelo fungo num espaço de armazenamento com temperatura a cerca de 30 graus e umidade entre 50 e 80%. Neste primeiro passo, o arroz também é usado para a preparação do shubo, uma cultura-mãe de leveduras, altamente ácida, que tem ainda a função de exterminar os microorganismos nocivos que possam estragar o mosto de fermentação.
Este preparo é feito em três estágios. Inicialmente, é colocada uma pequena proporção do arroz cozido puro, do arroz inoculado com o kōjikin (arroz de kōji), da levedura e da água. Dois dias depois, uma porção um pouco maior de água, arroz cozido e arroz de kōji é acrescida. Por fim, no quarto dia, uma parte maior desses três últimos ingredientes é colocada. A fermentação ocorre por entre três e cinco semanas, numa temperatura que varia entre 8 e 18 graus. Quanto menor a temperatura, maior é o tempo necessário para a fermentação. O saquê que é fermentado por mais tempo fica menos ácido e, dependendo das condições do arroz utilizado, tende a ficar com um aroma e sabores bem frutados.
O produto desse processo de fermentação é chamado de moromi, o mosto do saquê. Depois da fermentação, o moromi passa por um processo de filtragem por pressão. A massa é colocada em sacos de pano e pressionadas por uma máquina ou a mão (em produções bem artesanais) para a separação entre partes líquida e sólida. A massa formada pelo arroz que não se desintegrou na etapa anterior é chamada de sakekasu e contêm cerca de 8% do seu peso em álcool. O sakekasu é considerado altamente nutritivo e pode ser consumido puro ou usado em receitas e para fazer conservas de legumes. Ele também costuma figurar como matéria-prima para fazer o shōchū.
Álcool adicionado
Antes da separação do moromi, é possível adicionar álcool à mistura. Só de curiosidade, vale contar que boa parte do aditivo vem do Brasil. De um modo geral, essa adição extra não tem como função aumentar o teor alcoólico da bebida. A ideia, em especial em produtos de alta qualidade, é realçar os sabores e aumentar o tempo de vida útil da bebida.
Os saquês que não recebem adição de álcool são chamados de junmai, ou seja, ‘puro arroz’ e costumam ser mais valorizados no mercado. Mas a dose extra de álcool não quer dizer a bebida foi batizada e que, por isso, sua qualidade se torna automaticamente inferior. Tudo vai depender da maestria do produtor na alquimia dos sabores.
Usando um tecido um pouco mais grosseiro, é possível filtrar menos o moromi, deixando passar mais substância sólida para o líquido. Este saquê, de cor esbranquiçada e parecendo um leite meio ralo, é chamado de nigorizake. Quando o nigorizake é vendido sem pasteurização ele ganha o nome de kassei seishu (algo como saquê ativo) e é rico em leveduras vivas e enzimas.
Depois do primeiro processo de filtragem, a bebida passa por decantação. O líquido fica em repouso em temperatura baixa e, com isso, as partículas misturadas se assentam no fundo do recipiente. Para garantir uma coloração cristalina, o processo de filtragem pode ser repetido outras vezes e até substâncias como o tanino de caqui ou o carvão ativado podem ser usadas com este fim. Para encerrar, o saquê é pasteurizado, uma forma de esterilizá-lo e bloquear a ação de enzimas que possam lhe alterar o sabor.
No entanto, alguns fabricantes reservam uma parte da produção do ano para ser comercializada em pasteurização. Essa bebida é chamada de namazake (saquê fresco). O saquê não pasteurizado costuma ter um sabor mais refrescante e precisa ficar conservado em geladeira. Por isso, em muitos casos, o namazake nem chega a ser vendido fora da própria fábrica.
Finalizando, a bebida passa por um processo de maturação, entre seis meses e um ano, para refinar o sabor e o aroma. De um modo geral, o nihonshu é produzido logo depois da colheita do arroz, no final do outono e no inverno, para que passe a primavera e o verão em maturação até ser colocado à venda.
Em nenhuma das etapas, o saquê usa qualquer tipo de insumo de origem animal. Isso quer dizer que a bebida é totalmente vegana. Agora, é hora de escolher a sua tacinha e fazer o seu brinde com o saquê. Kanpai!