Mais um copo, por favor!

Leitura obrigatória

Roberto Maxwell
Roberto Maxwellhttp://www.tokyoaijo.com
Radicado no Japão desde 2005, atua como produtor de conteúdo multimídia e acumula trabalhos como repórter, documentarista, produtor e palestrante. Apaixonado por viagens, dedica-se a percorrer o arquipélago e registrar suas maravilhas e contradições.

Quando Marian Ietsugu, 37, deixou seu emprego na área de engenharia de alimentos no Brasil, decidiu trabalhar na confecção do pai por um tempo. Apesar da boa relação entre os dois no dia-a-dia, Marian estava insatisfeita. Ela queria retomar a carreira, se possível na área de bebidas, em especial as lácteas. “Sou intolerante à lactose e pensei que poderia ajudar de alguma forma se trabalhasse na área”, recorda.

Certo dia seu pai lhe fez uma proposta inusitada: trabalhar com cerveja. Inusitada porque seus pais não tinham o hábito de consumir a bebida. Em troca pelo serviço na confecção, o pai de Marian pagou o curso de sommelier de cervejas que abriu um novo mundo para ela.

“Foi a primeira vez que eu bebi cerveja artesanal com a devida atenção”, conta ela, que se a acabou se apaixonando pelo fermentado.

No entanto, ainda levou um tempo para que a cerveja ocupasse mais espaço na vida de Marian. Decidida a recomeçar, ela arrumou as malas e veio para o Japão. “Comecei como todo mundo, trabalhando em fábrica”, conta. Seu plano também não era muito diferente do de muita gente: trabalhar no Japão e juntar dinheiro por um ano para retornar para o Brasil.

“Ilusão, né?”, analisa, bem humorada.

Marian, no entanto, queria aproveitar a experiência na terra dos ancestrais para aprender mais. Procurou um curso de japonês comunitário na cidade em que morava, Okazaki, e encaixava as aulas nos horários de folga. “Foi lá que eu aprendi a fazer currículo em japonês”, recorda ela, que aplicou o conhecimento e se candidatou a uma vaga de trabalho num bar de cervejas artesanais de Tóquio. E conseguiu.

Com açaí e banana, a Solo Samba é uma cerveja inspirada em sabores do Brasil  (foto: West Coast Brewing/cedida)
No mundo cervejeiro japonês

A essa, outras experiências foram se somando em bares, onde foi aperfeiçoando o japonês e fazendo contatos com o mundo cervejeiro, até que pintou a primeira oportunidade para estagiar numa cervejaria que tinha uma rede de tap rooms na capital japonesa. Neste começo, alternou entre o balcão e a produção até conseguir uma vaga de tempo integral em uma outra fábrica.

As lembranças, no entanto, não são boas. “Foi uma oportunidade, mas que, infelizmente, não deu certo”, diz. Marian não se sentia respeitada na entrevista e, uma vez dentro, sequer teve acesso direto à produção. “No mundo da cervejaria, uma mulher precisa provar não somente que tem capacidade intelectual para o trabalho mas, também, física”, desabafa. “Mesmo quando mostramos nossa capacidade intelectual, isso não garante que teremos tratamento igual ao dos homens”, continua.

Ambiente oposto ao que vive hoje, na West Coast Brewing, uma cervejaria artesanal na capital da província de Shizuoka, onde se  estabeleceu desde junho de 2022. Marian é a primeira mulher a trabalhar na cervejaria.

“Desde a entrevista, em nenhum momento duvidaram da minha capacidade. Não vou dizer que foi fácil. No final do primeiro dia, minha perna doía porque eu tinha moído 300 quilos de grãos sozinha. Hoje o corpo já se acostumou, mas o mais importante foi ter sido tratada como uma pessoa, ser tratada em pé de igualdade com os funcionários homens da casa”, conta.

Paixão cervejeira: Marian e sua criação, a Solo Samba (foto: Roberto Maxwell)
Cerveja: substantivo feminino

Mulheres na cervejaria não são mais novidade mas, ainda assim, muitos obstáculos se apresentam para as que se dedicam à empreitada de produzir uma bebida que, por muitos anos, ficou associada ao universo masculino. Marian vem encontrando apoio em outras mulheres, como Fernanda Ueno, da Japas, uma marca brasileira criada por mulheres nipo-brasileiras e que vem conquistando mercado dentro e fora do Brasil com cervejas artesanais com uma pitada de Japão.

“Assim como em outros mercados, infelizmente a ascensão na carreira cervejeira para as mulheres é muito mais difícil que para homens”, conta Fernanda. “Temos que estudar mais, trabalhar mais –  muitas vezes recebendo menos –  e ainda sendo mega qualificadas, sempre teremos nossa capacidade e conhecimento julgados e questionados”, continua.

Tanto Fernanda quanto Marian apontam a importância de agir de forma colaborativa para impulsionar outras mulheres no universo da cerveja. “Tenho convicção de que o impacto que as ações de mulheres apoiando outras mulheres do universo cervejeiro pode, literalmente, mudar a vida de uma pessoa”, explica Fernanda. “Assim, pouco a pouco teremos cada vez mais mulheres ocupando esse espaço e também uma maior consciência no poder que temos de transformá-lo num ambiente muito melhor para todos”, segue.

Fernada indicou Marian para um importante programa de estudos nos Estados Unidos e ela foi aprovada. Ela está se preparando para viajar para a Califórnia,onde fará a formação de Mestres de Cerveja da UC Davis. Enquanto isso, também quer mostrar o caminho das pedras para outras mulheres. Ela fala com muita gratidão da Pink Boots Society, uma organização norte-americana que lhe ofereceu uma bolsa de estudos para um outro programa e é especializada em atividades de formação para mulheres e pessoas não-binárias.

Já na West Coast, um dos primeiros desafios da Marian foi criar uma cerveja original, a partir de elementos brasileiros. Assim nasceu a Solo Samba, uma sour com sabor de açaí e banana. “A gente sentou junto e fez a receita. Eu queria uma cerveja ácida, um pouquinho mais alcoólica. E foi o que aconteceu”, conta ela, que já tem planos para novos produtos e voos. O primeiro deles é, claro, o curso nos Estados Unidos, com seus três meses de treinamento intensivo.

Marian, no entanto, quer ir mais longe. Ainda sem data de retorno ao Brasil, ela sonha em abrir sua própria cervejaria, “talvez um pouco mais perto dos meus pais”, diz a paulista de Piraju. “Quero ter uma coisa que possa ser minha cara, em que eu possa colocar minha personalidade ali. Ainda tenho muito que aprender. Estou aprendendo muito e ainda tem uns passinhos aí”, finaliza.

Aconchego e cerveja artesanal à beira-mar

Fábrica e pousada em Mochimune, cidade de Shizuoka, a West Coast Brewing vai além das “loiras geladas
Quarto do The Villa (foto: West Coast Brewing/cedida)

O mercado da cerveja artesanal no Japão é recente. Exigências na legislação colocaram o país bem atrás na onda que tomou o mundo de assalto e mudou o modo como muita gente consome o fermentado mais popular do planeta. Muitos estrangeiros residentes contribuíram para a expansão das artesanais no país, grande parte deles trazendo conhecimento privilegiado de produção de seus países.

Foi assim que surgiu a West Coast Brewing, cujo nome é referência à Costa Leste dos Estados Unidos, onde ficam cidades como Los Angeles. É na produção da região que a cervejaria se inspira, com diversidade de estilos e sabores fortes e marcantes.

Para apresentar seus rótulos, a cervejaria recebe os clientes para visitas à pequena fábrica. Já a degustação é feita no tap room que fica bem em frente à área de produção e divide espaço com uma confortável pousada, o The Villa & Barrel Lounge. Os quartos amplos, cada um deles nomeado com um tipo de lúpulo, acomodam até quatro pessoas e têm um aspecto de casa.

O Mosaic, por exemplo, é um espaço no estilo loft, com um confortável sofá na “sala” e as camas baixas, na parte de cima. O desafio principal é subir a estreita escada de madeira depois de tomar os 10 litros de cerveja fresquíssima —  e exclusiva do hotel —  que é oferecida aos hóspedes a cada diária. “Por isso que colocamos um sofá confortável embaixo”, explica Erika Mochizuki, assessora de imprensa da cervejaria.

Quem ainda tiver disposição, pode provar a diversidade do line up da West Coast no frigobar ou harmonizada com comidinhas no tap room, não incluídos na diária. Antes de beber muito, vale a pena, também, uma visita Mochimune Port Spa, uma casa de banhos termais bem ao lado da cervejaria. A região no entorno não oferece muitos outros atrativos, o que não é nada mal. Uma estadia no local é, como propõe o hotel-cervejaria, um local para dormir, beber e dormir… de novo.

O J1Talks é um podcast produzido com a perspectiva e insights de empreendedores brasileiros inseridos na comunidade brasileira do Japão
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