Filme japonês com protagonistas brasileiros estreia no Brasil

É a primeira vez que imigrantes brasileiros protagonizam um filme mainstream no Japão

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Koji Yakusho e Lucas Sagae em cena de Família - ©2022 "Familia" FILM PARTNERS

 “Como está a família, Dona Neusa?”, diz o quitandeiro sentado na porta de sua loja já na primeira sequência da nova película do diretor Izuru Narushima que chega às salas japonesas no dia 6 de janeiro, na primeira leva de estreias cinematográficas do ano. Batizado de “Família”, o filme é protagonizado por Koji Yakusho (Dias Perfeitos) que, aos 67 anos de idade e mais de quatro décadas de carreira, é considerado um dos maiores nomes da dramaturgia nipônica. O elenco conta, ainda, com nomes conhecidos do showbizz japonês como Ryo Yoshizawa (Kamen Rider Fourze) e Miyavi, músico e Embaixador da Boa Vontade da ACNUR, a agência da ONU para refugiados.

Junto às estrelas, os créditos do filme destacam dois nomes estrangeiros ainda desconhecidos do grande público. Lucas Sagae e Fadile Waked são brasileiros e, em suas estreias como atores, carregam o peso de representar a juventude brasileira no Japão numa história carregada de emoção e com altas doses de realismo. Ao trazê-los no elenco, “Família” se torna o primeiro filme japonês que chega ao grande circuito trazendo brasileiros que foram criados na Terra do Sol Nascente como protagonistas, um marco nas três décadas de história da comunidade brasileira no Japão.

 

Lucas Sagae e Fadile Waked em cena de “Família” (foto: cedida/©2022 “Familia” FILM PARTNERS)

Caminhos de luta
Lucas Sagae tem 18 anos e sua ancestralidade japonesa vem da mãe, que veio para o Japão com o pai do rapaz. Nascido no Japão, Sagae tem o sonho de conhecer pessoalmente seu país de origem. Ele, como muitos jovens na mesma situação, nunca foi ao Brasil. Poderia ser a mesma história de Marcos, seu personagem em “Família”, um adolescente brasileiro cheio de boa vontade que, para proteger a namorada e os amigos, acaba se envolvendo com um grupo de mafiosos perigosos da região onde mora. Lutador e praticante de artes marciais na vida real, Sagae teve que aprender a apanhar para dar vida ao personagem que leva surras homéricas ao longo das duas horas de película.

Prestativo, mas um pouco retraído. Assim é o Lucas que nos recebe na entrevista exclusiva que os protagonistas brasileiros deram para o GUIA JP dias depois das sessões para imprensa realizadas em Tóquio em dezembro de 2022. Essas foram duas coisas da própria personalidade que o jovem levou para o personagem. “Eu sou assim. Sinto essa vontade de ajudar as pessoas porque me ajudaram bastante. Sofri bullying na escola e meus amigos sempre me deram a mão”, conta ele.

 

O cantor Miyavi vive um gângster em “Família” (foto: cedida/©2022 “Familia” FILM PARTNERS)

A luta, para Lucas, foi uma forma de defesa — não contra os assediadores, mas no combate a um inimigo invisível: a diabetes. “Descobri a doença aos 11 anos, depois de um exame que fiz na escola”, lembra ele que, já na época, era apaixonado por esportes. “Eu jogava beisebol no time escolar e tive que parar tudo”, continua, relembrando o momento difícil, que chegou a levá-lo à depressão. Foi durante o tratamento contra a doença que Lucas se encontrou com o kickboxing. O tratamento levou o rapaz ao equilíbrio do corpo e a luta, trouxe paz para a alma.

Foi na academia em que treina que Lucas viu o anúncio que o levou ao elenco de “Família”. Morador de Kani, Gifu, ele diz ter ficado surpreso com a chamada para os testes do filme. “É uma cidade pequena. Não esperamos encontrar uma oportunidade como essas por lá”, explica, bem humorado. O anúncio buscava por jovens entre 16 e 22 anos. Lucas tinha 15. “Fui fazer o teste já achando que seria reprovado por causa da idade”, recorda. O resultado foi diferente e, depois de diversas etapas de seleção, o lutador que dominou a diabetes acabou protagonista de filme.

Das revistas para a tela
Na sessão para as lentes da nossa fotógrafa, já dá para perceber a familiaridade que ela tem com as câmeras. Fadile Waked, 23, atua como modelo desde os 12 anos de idade, quando vivia em Nagoya. O sucesso no mundo da moda não impediu que ela nutrisse outro sonho: o de ser atriz. Fadile não imaginava, no entanto, que pudesse realizá-lo aqui mesmo, no Japão. Filha de um libanês e uma brasileira, a jovem veio parar na Terra do Sol Nascente porque a mãe divorciou-se do pai e se casou novamente com um descendente de japoneses.

A carreira de modelo acabou levando a moça para Tóquio, onde ela já fotografou para dezenas de marcas. Fadile acabou sabendo do teste através de contatos e pediu para a sua agência inscrevê-la na seleção. A aprovação veio e ela mergulhou nas filmagens, interrompidas pela pandemia e retomadas assim que os protocolos de segurança foram definidos, meses depois.

 

Festa no danchi: descontração de brasileiros ajudou Shoji Yakusho em cena (foto: cedida/©2022 “Familia” FILM PARTNERS)

Como o elenco brasileiro é formado por não-atores, Fadile e seus colegas  mergulharam num processo de preparação que levou três meses. Sob o olhar atento do diretor, ela foi trazendo elementos da sua própria personalidade para compor a Erika, uma jovem meiga e solar, que trabalha como hostess num clube noturno. “Ela é alegre e tagarela como eu. Mas, também, é bem expressiva nas emoções”, conta a jovem.

Maternal e amigável, Erika é o elo entre Marcos e o núcleo japonês da trama, a família Kamiya, cujo patriarca é Seiji, um ceramista em crise, personagem do veterano Koji Yakusho. O encontro entre os dois protagonistas masculinos ocorre de maneira inusitada, quando Marcos tenta fugir dos mafiosos chefiados pelo Kaito, um vilão frio vivido de forma quase caricatural pelo também cantor Miyavi.

Uma trama atual
É por uma ação de Erika que a família Kamiya acaba na roda de samba em um danchi — conjunto habitacional — cheio de brasileiros. A cena com os japoneses perdidos num pagode bem brasileiro é um dos momentos do filme com os quais os brasileiros no Japão certamente irão se identificar. Em entrevista divulgada pela assessoria de imprensa da película, Koji Yakusho relata as boas recordações que tem da gravação, realizada no Homi Danchi, em Toyota, Aichi. “Os figurantes brasileiros pareciam estar se divertindo no set”, diz ele. “Foi uma filmagem difícil, mas a alegria deles ajudou bastante. Sou muito grato”, completa.

No início do filme, a família Kamiya ganha um novo membro, Nadia, esposa de Manabu (Ryo Yoshizawa), filho de Seiji que trabalha numa empresa japonesa na Argélia. A personagem é vivida pela atriz paquistano-japonesa Malyka Ali. A partir daí, a história da família Kamiya e as desventuras do casal formado por Erika e Marcos vão se desenvolvendo de forma perturbadora até o clímax da obra que vai sendo conduzida com altos e baixos pelo diretor.

 

Ryo Yoshizawa vive Manabu, filho do personagem principal vivido por Koji Yakusho (foto: cedida/©2022 “Familia” FILM PARTNERS)

A película tem bons momentos, em especial nos encontros entre Seiji, Erika e Marcos. Ver como o personagem japonês acaba se envolvendo com uma história que aparentemente não diz respeito a ele fala muito sobre a relação entre os nipônicos e os estrangeiros residentes no Japão. Com suas feições de homem comum e uma atuação muito correta, Koji Yakusho traz credibilidade e verdade ao personagem, o que faz muita diferença.

Outro ponto forte é a participação de outros brasileiros em papéis menores, com destaque para Alan Shimada que vive Rui, amigo de Marcos, também perseguido pelos mafiosos locais. Shimada é membro do grupo de rap Green Kids, com o nome artístico de Flight-A. Formado por quatro brasileiros, um peruano e um japonês, o conjunto lançou  o clipe de “Datsugoku” (algo como ‘fuga’), música que o grupo apresenta em uma das cenas do filme. Flight-A liberou na época da estreia do filme no Japão o clipe de “Don’t Give Up”, uma incursão solo que também está na trilha sonora da obra. 

Descontando a inexperiência dos atores para papéis tão difíceis, “Família” é um retrato sincero de um momento em gestação para o Japão, um país cuja sociedade enxerga a si mesma como homogênea, mas que vive no século um desafio que vale a sua própria existência. Com uma população que já começou a encolher, ou o Japão acolhe o diferente ou tende a desaparecer.

 

Grupo Green Kids mostra a inserção de brasileiros na cena hip-hop local (foto: cedida/©2022 “Familia” FILM PARTNERS)

O filme cutuca o país na ferida já aberta da inclusão dos estrangeiros que aqui vivem. Protagonista da obra, Koji Yakusho faz uma observação que nem sempre é percebida pelos japoneses. “Acredito que quem não se pareça japonês realmente viva situações de discriminação e preconceito [no país]”, diz o ator. “Infelizmente, enquanto eu estiver vivo, provavelmente não vai ser possível ver o fim do preconceito e da desigualdade”, prossegue.

Enquanto tempos melhores não vêm, o ator deixa um recado. “Gostaria que as pessoas, ao verem o filme, sintam que, para nós seres humanos, os laços entre pessoas, dentre eles a família, são importantes”, diz. Entre erros e acertos, esta é a principal mensagem trazida pelo filme que estreia no Brasil no próximo dia 15 de agosto.

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