Cinco dias em Kagoshima

Leitura obrigatória

Roberto Maxwell
Roberto Maxwellhttp://www.tokyoaijo.com
Radicado no Japão desde 2005, atua como produtor de conteúdo multimídia e acumula trabalhos como repórter, documentarista, produtor e palestrante. Apaixonado por viagens, dedica-se a percorrer o arquipélago e registrar suas maravilhas e contradições.

Dicas imperdíveis para um feriado prolongado na província mais meridional da ilha de Kyushu

Janeiro é o mês do aniversário de um dos meus melhores amigos. Ele é meu parceiro de copo e pratos e já viajamos juntos para alguns dos mais remotos locais do Japão. Kagoshima era a única província do país na qual eu nunca tinha pisado e, por isso, decidi convidá-lo para uma viagem gastro-histórica. Divido aqui com vocês, em forma de diário, os melhores momentos desta viagem.

DIA 1 – Reconhecendo o local

Kagoshima fica na ponta sul da ilha de Kyushu e, por conta de sua posição geográfica, é riquíssima em histórias e paisagens naturais. Chegamos ao aeroporto no final da manhã e o ônibus nos levou até o centro da cidade em cerca de 40 minutos. Era feriado, tudo estava meio morto e fomos procurar um lugar para comer. Num shotengai (calçadão) coberto próximo à estação de Kagoshima-Chuo fomos à procura de um restaurante de tonkatsu muito bem avaliado on-line. A espera era grande. Pegamos a senha e fomos dar uma volta.

Uma das poucas lojas abertas era a Fukae, dedicada ao shochu, bebida típica da ilha de Kyushu. Enfileiradas nas prateleiras, as garrafas coloridas – e inteligíveis para quem não lê japonês – chamam atenção. O shochu é uma bebida destilada que pode ser feita com diversos ingredientes. Em Kagoshima, o tipo mais popular é o imojochu, feito com batata-doce (imo, em japonês). O simpático vendedor apresenta os rótulos com atenção e explicações bem detalhadas e é difícil escolher um só. Deixo para depois.

No passeio pelo shotengai, acabamos encontrando o Kagaribi, um restaurante pequenininho de lámen que chamou nossa atenção. A fome era grande e entramos.

Pilotado por duas mulheres, o que é raro no mundo do lámen, o espaço de 8 lugares serve o tonkotsu, uma sopa feita com ossos de porco e rica em umami. Pedi o prato que leva o nome da casa e recebi uma tigela muito saborosa. Recomendadíssimo! O tonkatsu? Até fomos mas, honestamente, deixa quieto.

DIA 2 – Explorando a cidade a pé

Escolhi o Art Hotel Kagoshima por causa da vista esplendorosa do Sakurajima, o vulcão ativo que é símbolo da província. Acordamos com uma pequena quantidade de fumaça branca saindo da cratera, algo que, fui saber depois, é bem comum. Caminhamos pela beira da baía até o Mercado de Kagoshima com a intenção de tomar o café da manhã por lá. Estava meio tarde, não conseguimos ver o mercado em si e fomos direto para o Ichiba Shokudo. A ideia era comer peixe fresco, mas a foto mais chamativa do cardápio era a do aji fry, o carapau empanado e frito, como uma milanesa. De fato, o peixe chegou crocante e delicioso, muito bem acompanhado de verduras fresquinhas e um molho de pasta de soja missô bem adocicado. Para não sair da tradição, também fomos no chirashizushi, uma tigela de arroz coberta com sashimis diversos. Aqui, o destaque maior era o kaijiru, uma sopa de missô sarada em mariscos, com um sabor excepcional. Valeu muito a pena.

Seguimos na caminhada, desta vez à procura do shoyu local. O molho de soja de Kagoshima é conhecido por ser mais viscoso e adocicado. Nossa primeira visita foi a uma das lojas da Choshiya que produz shoyu desde 1735. Localizada num antigo posto de gasolina, a venda é um espaço supersimples que ganha vida por causa do vendedor e do seu gato. Ele nos ofereceu uma degustação dos produtos da casa que são bem interessantes. Além do shoyu, a Choshiya produz diversos outros molhos, todos à base do original de soja. Valeu a visita.

Mais 30 minutos de caminhada adiante e chegamos ao Monte Shiroyama, uma pequena elevação que oferece uma vista privilegiada para a cidade. A subida, pelo lado do hotel que fica no topo, tem uma escadaria e é bem amigável. O local é ocupado por um parque e a vista de cima é muito bonita, com o Sakurajima em destaque na paisagem. Uma visão inesquecível!

DIA 3 – Circulando o vulcão de bicicleta

O povo local tem muito respeito pelo Sakurajima. “Sakura” é a flor da cerejeira e “jima” é ilha. Hoje conectado a Kyushu por um minúsculo pedaço de terra, o vulcão era cercado de água por todos os lados até 1914 quando uma enorme erupção fez o serviço.

Nos últimos anos, foram tantas erupções no Sakurajima que as pessoas perderam a conta. Mas o Centro de Informações da “ilha” não deixa passar nada. A montanha de 1.117 metros é monitorada com atenção pelos cientistas. Eles consideram erupção toda exalação de cinzas que alcance mil ou mais metros de altura. Ou seja, a fumacinha branca que vimos ontem do quarto não é formada por cinzas. É apenas vapor d’água e, portanto, não se qualifica como erupção.

Da parte central da cidade de Kagoshima, são 15 minutos de barco até a ilha. Alugamos uma bicicleta esportiva no Centro de Informações e partimos para a volta à ilha. Poucos restaurantes estavam abertos e, por isso, levamos uma merendinha. Mas em menos de dez minutos de pedalada encontramos o Lapita, uma sorveteria. Com um interior feito com partes de antigas construções, o local é uma obra de arte em si. A Mana, dona da loja, veio de Tóquio para a ilha realizar seu sonho de morar no local. Os sorvetes dela são impecáveis, mas o de satsuma-imo, a batata-doce local, é cremoso e inesquecível.

Foi a adição de energia que precisávamos para a rota que totaliza 36 km e é cheia de altos e baixos. Além das belas vistas da Baía de Kinko, a imagem do vulcão vai mudando ao longo do trajeto. Num determinado ponto, no bairro de Kurokami, a cratera sul, que é a mais ativa, fica tão próxima que chega a amedrontar. Aliás, no bairro fica um dos pontos que remetem à erupção de 1914. O portal do santuário xintoísta local, que tinha 3 metros antes do evento, foi praticamente todo soterrado, ficando de altura menor que o de uma pessoa adulta.

É seguro passear no Sakurajima? Essa é uma pergunta capciosa. A antiga ilha é habitada e o risco que o turista sofre é o mesmo dos seus cinco mil moradores. A cratera está sob vigilância constante e, embora uma erupção seja imprevisível, eventos de grandes proporções costumam ter sinais e toda vez que a montanha fica mais invocadinha, alertas são emitidos. Além disso, há vários abrigos e rotas de fuga pelo mar. Tenha atenção e aproveite o passeio. O maior contato que você deve ter com a atividade vulcânica na ilha será o gostoso escalda-pés de água naturalmente aquecida que fica perto do Centro de Informações e que tem uma bela vista da montanha fumegante.

DIA 4 – Banquete francês e história local

Este foi o dia do aniversário do meu amigo e eu decidi convidá-lo para um almoço no Automne, considerado um dos melhores restaurantes de alta gastronomia de Kagoshima. A casa fica numa residência de mais de 100 anos de idade num pequeno penhasco à beira-mar. Impecável, o ambiente é tudo o que se imagina em termos de discrição e elegância japonesa, com espaços abertos, muito bem iluminados e um belo jardim com uma cachoeira.

O menu em seis passos traz ingredientes da região em diversos preparos franceses, num delicado encontro entre duas gastronomias que se combinam bem. Estiveram lá os frutos do mar, o kuroge wagyu, carne de boi marmorizada de alta qualidade, as inúmeras verduras e, claro, temperos como o shoyu e o missô. Tudo preparado com esmero e muito sabor, acompanhado por vinhos europeus de alta qualidade. Foi uma daquelas refeições que reverberam no paladar e no coração por muito tempo.

Daqui, seguimos prontos para a próxima parte da viagem, um mergulho na história de Kagoshima. Começamos pela Satsuma Glass Kogei, uma fábrica histórica de produção de copos no estilo kiriko, em que o vidro é trabalhado pelos artesãos com cortes para trazer cores e formas. Fiquei apaixonado por cada copo e cada garrafa produzidos em processo realmente artesanal. O ateliê de fabricação fica em área aberta e a gente pode assistir à destreza com que os trabalhadores criam as belas peças vendidas na loja ao lado.

A poucos metros da fábrica fica o Sengan-en, a residência de veraneio do clã Shimazu, que dominou Kagoshima até o século 19. O jardim, datado do século 17, é o cenário para uma residência incrível com quase 30 cômodos. Hoje, ela é apenas uma parte do que era até o final do xogunato e representa bem a sofisticação e o poder dos Shimazu na região. Tivemos a sorte de pegar uma visita guiada (em japonês) que apontou os detalhes da casa com muita clareza e contou histórias sobre a família e sobre visitantes ilustres que ali passaram. Foi possível entender como a estratégica posição e o olhar do clã Shimazu colocou Kagoshima na vanguarda da modernização do Japão no meado do século 19.

A área da cidade com a fábrica e o jardim faz parte dos Sítios da Industrialização Japonesa no Período Meiji, uma série de construções espalhadas pelo Japão e tombada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

DIA 5 – Vai me enterrar na areia?

Estamos em Ibusuki, cidade a pouco mais de uma hora de trem de Kagoshima. O dia começou com uma caminhada até o Porto de Yamakawa, uma área conhecida pela pesca do atum-bonito, ou katsuo, em japonês. O atum-bonito é um peixe de carne vermelha e sabor ferroso, muito apreciado pelos japoneses. Começamos o dia visitando o mercado que fica no Michi no Eki, as paradas de estrada do país. Lá, conhecemos o simpático Ken-chan, um senhor de 80 anos que vende diversos produtos derivados do atum-bonito, dentre eles o katsuobushi, essencial na gastronomia japonesa.

O peixe passa por um processo de cozimento, defumação e cura que pode levar até seis meses. O resultado final lembra o duríssimo guaraná em barra, muito comum no norte do Brasil. Depois, ele é laminado em lascas finíssimas para gerar um caldo rico em umami. Depois de fazer compras – e tomar uma dose de shochu – na barraca do Ken-chan, pudemos fazer um tour completo pela fábrica da Daimaru, que nos mostrou todo o processo, basicamente artesanal, da produção do katsuobushi. Antes, claro, a gente provou, no restaurante do Michi-no-eki, um katsuokatsu, empanado de atum-bonito. Perfeitíssimo.

Na volta para o centro de Ibusuki, passamos na principal atração da cidade. O suna-mushi é um relaxamento para o corpo que usa as areias quentes da Praia de Yunohama. A areia superficial do local nem parece tão quente ao primeiro toque. Basta escavar bem pouquinho para sentir que a água ali é quente. A placa indica que a temperatura é de mais de 80 graus!

A experiência, portanto, é ser enterrado na areia, num local sem água infiltrada, por 10 minutos. O tempo é considerado ideal para não ter problemas de tontura ou queda de pressão.

Para a atividade, não precisamos levar nada. O Suna Mushi Kaikan oferece um quimono que protege o corpo da areia e uma toalha para proteger os cabelos. A sensação é um pouco sufocante de início, muito mais pelo peso da areia do que pela temperatura, bem tolerável. Depois de ter perdido o medo, gostei da experiência que terminou no banho termal do local.

Depois da enterrada, foi hora de voltar para o hotel, dar uma descansada e se preparar para regressar a Tóquio, com a certeza de que deixo para trás um destino ainda pouco explorado

por quem visita o Japão. Uma pena! Kagoshima é um dos lugares mais sensacionais que eu visitei neste país.

por Roberto Maxwell

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