Banhos selvagens
Nossa próxima parada era nos arredores de Shikaribetsu, onde a tempestade não tinha chegado devido ao bloqueio feito pelas montanhas do Parque Daisetsuzan. Meu objetivo por ali era conhecer uma série de banhos de águas termais na natureza, a céu aberto na floresta, chamados em japonês de noyu. Esses banhos são criados e cuidados por moradores locais em montanhas e margens de rios onde existem, também, fontes de águas termais. Em geral, seu uso é aberto a qualquer pessoa e não é cobrada a entrada. Apesar de serem gratuitos, faz parte da gentileza que os visitantes deixem alguma oferta. Quase sempre há uma caixinha de coleta para isso. Esses banhos também seguem as mesmas regras dos estabelecimentos tradicionais. É preciso entrar sem roupas, o que pode acanhar a maioria.

Kazuya, da guest house Santari, anfitrião com história pra contar
(foto: Roberto Maxwell)
O mais conhecido banho selvagem na área é o Shika-no-yu. Ele fica dentro de uma área de acampamento que pode ser usada entre julho e setembro. Com uma piscina bem maior do que o comum e por causa do fácil acesso, a poucos metros do camping, o Shika-no-yu é um dos mais populares banhos da região. Mas seguindo o rio é possível encontrar outros lugares menores, mas igualmente agradáveis para quem é fã de águas termais e de natureza. Para nós, no entanto, não foi possível chegar até os banhos, infelizmente. A neve já tinha se empilhado o suficiente no meio da montanha para que a gente não conseguisse chegar no local sem uma bota mais isolante. Fiquei triste.
Tampouco conseguimos ver o belo lago Shikaribetsu e participar das atividades de inverno que rolam no local. Com a superfície congelada, o lago serve de palco para o Shikaribetsu-ko Kotan, um evento em que hotéis iglu, bar, banho de águas termais feitos de gelo são construídos bem em cima do espelho d’água. Além disso, rolam uma série de atrações que vão te ajudar a se aquecer nessa fria! O siricotico gelado começa na terceira semana de janeiro e vai até a terceira semana de março.
Quem nos contou sobre este e outros eventos da região foi o Kazuya da guest house Santari que fica em Shintoku, a cerca de 35 km do lago. Apesar da distância, valeu muito a pena passar a noite no local, que é a casa em que ele mora e oferece três quartos, dois ocidentais e um em estilo japonês, para seus hóspedes. A casa confortável tem uma sala com lareira e o Kazuya exibe orgulhoso sua vitrola antiga, guardada como um santuário dentro do quarto de tatami. Pela manhã, ele ainda oferece um café com pão simples, mas muito gostoso. Isso sem contar com a hospitalidade local. Assim, saímos preparados para a nossa próxima missão.
Queijo japonês?
Hokkaido é o principal polo de produção de leite e derivados do Japão. A palavra 牧場 (“bokujo”, ou seja, “rancho”) aparece aqui e ali durante toda a viagem e indica os lugares de criação de gado leiteiro. A província sozinha é responsável por metade da produção de leite e por 90% do queijo natural do país. “Queijo natural” é aquele produzido diretamente do leite. No Brasil, é um produto tão abundante que nós nem conhecemos essa expressão. Entre os japoneses, porém, a maior parte do consumo desse laticínio vem do queijo processado, que usa o queijo natural como matéria prima.

Queijo curado no missô, segredos nesta especialidade da Fazenda Handa (foto: Roberto Maxwell)
De uns anos pra cá, com a abertura do país aos queijos estrangeiros, o Japão está aprendendo a comer queijo natural e gostando. E esse aumento no consumo também está incentivando os produtores locais a produzirem queijo natural, em muitos casos com influência europeia. De Shintoku, partimos numa viagem de 90 km até Taiki, onde fomos conhecer um queijo o qual representa que os japoneses querem dar um passo adiante e produzir um queijo com sabor próprio.
Descobri a Fazenda Handa há alguns meses quando, também em companhia da Sarah, fui conhecer a Cheese no Koe (”A Voz do Queijo”, em japonês), uma queijaria localizada em Tóquio e especializada em laticínios de Hokkaido. Meu interesse por queijos já é antigo e ano passado fiz uma viagem pela Serra da Canastra, onde quis conhecer os produtores de queijo artesanal. Uma vez em Hokkaido, não pude deixar de fazer o mesmo e a Handa me interessou justamente por causa de um produto inusitado que eu vi na Cheese no Koe: o queijo curado na pasta de soja missô.
Quem nos recebeu no café da fazenda foi a dona Yoshiko, matriarca e voz mais falante da família. Junto com o esposo e os três rebentos, ela toca a fazenda, cheia de energia. Dona Yoshiko é muito direta e, diante de dois estrangeiros que surgiram sei lá de onde, quer logo saber o que a gente quer saber dela. Pergunto sobre a história da fazenda. Ela me conta que a história atual da Handa começa em 1979, quando o marido assumiu a fazenda da família. A produção de queijo natural se iniciou nos anos 1990. Naquela época, pouca gente produzia o laticínio na região e, por isso, eles não tinham referência. Hoje, ela conta com orgulho do filho que se tornou mestre queijeiro depois de 4 anos de experiência na França.

Primeira tapioca da Dona Yoshiko (foto: Roberto Maxwell)
Curar queijo com missô surgiu como uma proposta de colaboração vinda de uma empresa produtora de missô. Detalhes, ela não revela. “É segredo”, diz. Mas fica clara a intenção de buscar um sabor autenticamente japonês para o queijo. Na boca, o resultado é uma explosão de sabores. O missô traz um sabor adocicado e uma riqueza de umami. Como os irmãos europeus dialogam bem com os vinhos, o queijo curado por 10 meses na pasta de soja japonesa pede um nihonshu, o saquê de arroz, de preferência um de sabor rascante ou um refrescante namazake, a versão não pasteurizada da bebida.
Mas o mais inusitado ainda viria a acontecer. Depois das despedidas, a Dona Yoshiko aparece com um saco plástico daqueles de mercado. De dentro, ela tira um pacote com uma farinha bem branca que me soa algo conhecido: um quilo do bom e velho polvilho doce, que ela tinha comprado numa viagem que fez ao Brasil meses atrás. Daí, ela nos conta que tinha comido uma “panqueca” por lá e gostado muito. Alguém disse para ela, então, que a tal panqueca se fazia com aquela farinha. Mas ela não fazia ideia de como preparar o negócio. Imediatamente, a gente entendeu que ela estava falando de tapioca e, num piscar de olhos, a Sarah estava na cozinha ensinando a dona Yoshiko a preparar a “panqueca”. Hidratação, peneiragem… Ela ia assistindo tudo com olhar atento.
Depois da Sarah ter preparado algumas — e sido reprovada algumas vezes pelo exigente paladar da nossa anfitriã —, foi a vez dela própria tentar a sorte na tapioca. E já de primeira, ela acertou na forma e no volume. “Coloca queijo”, dizia ela para a sua assistente na cozinha, uma senhora que trabalha no café e na produção do queijo da fazenda. “Queijo é o que não falta”, continuava a dona Yoshiko, com uma fala que eu só tinha ouvido dessa maneira em Minas, quando tive o prazer de comer o pão de queijo da Eliane, que produz junto com o marido Otinho um dos queijos mais gostosos da Serra da Canastra. Coincidência ou não, as duas receitas levam polvilho. As tradições queijeiras podem ser diferentes, mas o orgulho do que se produz é um só.
Um cemitério na capital
Depois de uma viagem de 3 horas, passando pela primeira vez por uma via expressa, chegamos a Sapporo onde pernoitamos. Saímos pela manhã para visitar um dos mais interessantes pontos da capital de Hokkaido, o Cemitério Makomanai Takino, numa área periférica da cidade. Não, não foi uma atração mórbida que me levou a querer conhecer o local. No Makomanai Takino está uma das obras mais recentes de um dos mais prolíficos arquitetos japoneses, Tadao Ando.
Aberto em 1982, o Makomanai Takino ocupa uma área de mais de 1 milhão de metros quadrados, praticamente um bairro inteiro dedicado aos que já se foram. Diversas esculturas se misturam aos diversos lotes dedicados aos túmulos no local rodeado por natureza. Logo na entrada, um exército de moais recebe os visitantes, enquanto em diversas outras partes aparecem outras visões surreais como uma reprodução das enigmáticas pedras Stonehenge, um monumento neolítico localizado na Inglaterra.

Cemitério Makomanai Takino: obra de Tadao Ando deu nova vida ao Buda. (foto: Roberto Maxwell)
Mas nenhuma construção do pacato cemitério ficou mais conhecida que a Colina do Buda, esta sim, obra do Tadao Ando, inaugurada em 2015. Quer dizer, dele em parte. No local desde sua inauguração, a estátua de Buda de 13,5 metros pousava serenamente a céu aberto. Mas ao que parece, ela assustava os visitantes do local, de acordo com alguns textos veiculados na imprensa. Teria sido por essa razão, então, que Ando foi convocado para repensar a estrutura. Para tanto, ele criou no entorno dela uma espécie de santuário de concreto, com um espelho d’água no entorno e um túnel de 40 metros que passa por baixo de uma espécie de colina e conduz até a estátua. À distância, é possível ver somente uma parte da cabeça do Buda cercada por um campo que, no verão, é coberto de lavandas. Por dentro, a luz externa ilumina a estátua e traz um ar solene e agradável para quem vem fazer suas orações. Ao longo do ano, o campo também muda de forma, ficando verde na primavera, seco no outono e coberto de neve no inverno. Mas nada se compara à vista de verão, salpicada de lilás pelas flores de lavanda. Mais um item para engrossar a lista de lugares a se visitar de novo em Hokkaido.
Ouriço e outros bichos
Não existe visita a Sapporo que não passe pela excelente gastronomia local. E não há gastronomia local sem os frutos do mar frescos que abastecem os inúmeros restaurantes da cidade, dentre eles os que ficam no charmoso Mercado Nijo, bem no centrão da cidade, próximo à torre de transmissão, ponto de referência para quem só conhece a cidade de visita.
Como a sazonalidade é uma das regras na gastronomia japonesa, ingredientes frescos não podem faltar à mesa. No inverno de Hokkaido, isso é sinônimo de frutos do mar de alta qualidade, que aportam na província e dela seguem para os mercados de todo o país, incluindo o Tsukiji e o Toyosu, em Tóquio.

Donburi de frutos do mar: especialidade do Mercado Nijo
foto: Roberto Maxwell
Caranguejo-rei, siri-peludo, ouriço-do-mar são os nomes mais ouvidos e lidos nas barracas do pequeno mercado, hoje muito mais uma atração turística do que outra coisa. Isso não diminui o valor da visita ao local e seus restaurantes. Para a última refeição da viagem, pedi um donburi com caranguejo, ouriço e atum. Tudo tão fresco e muito bem arrematado com um arroz igualmente delicioso. Honestamente, não é barato. Mas o sabor valeu cada “palitada”.
Depois dessa, era embarcar de volta para o aeroporto no trânsito mais ou menos pesado de Sapporo. Enquanto as luzes da cidade começavam a brilhar, eu olhava para a janela e tentava definir qual seria a lembrança mais marcante dessa viagem. Seria a Sarah dirigindo bravamente na nevasca? Ou os flocos de neve bailando no asfalto fugidos dos descampados? Quem sabe, então, os legumes frescos da sopa de curry? Ou a dona Yoshiko preparando tapioca pela primeira vez?
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